A contabilidade dos dias

Padrão

Ensina-nos a contar os nossos dias para que o nosso coração alcance sabedoria.
Salmos 90:12

A Bíblia é mesmo fascinante. O livro dos Salmos, como não poderia ser diferente, apresenta não somente louvores ao SENHOR, mas demonstrando momentos de angústia e questionamentos dos autores-homens, deixa clara a sua posição de livro que não trata de um Deus distante, mas de um Deus que não apenas aceita o que o busca, pois este foi, antes, alcançado, mas que o atende até mesmo nas situações menores, nos termos de uma vida espiritual dedicada para as coisas lá do alto. O versículo em destaque, do salmo 90, está inserido em um contexto de angústia. O início deixa isso claro quando o salmista declara, em louvor, a grandeza do SENHOR que é o seu refúgio em paralelo com a sua própria limitação e pequenez (é pó). O versículo 10, em particular, daria a qualquer um motivo para conversas sobre trabalho e cotidiano pois, já naquela época, o salmista apresenta a percepção de que os dias se passavam rápido demais e o curto espaço de tempo reservado para o homem era de sofrimento (“a vida passa depressa, e nós voamos!”). É nesta condição que o salmista apresenta uma pergunta de difícil resposta:

Quem conhece o poder da tua ira? Pois o teu furor é tão grande como o temor que te é devido.
Salmos 90:11

Pela sequência do texto, pode-se entender que a pergunta sobre o poder da ira de Deus estaria diretamente relacionada às questões apresentadas anteriormente. Em outras palavras, a angústia e o sofrimento da vida seriam causadas pela ira de Deus? Reconhecendo que a ira de Deus é justa, o restante do salmo apela para a misericórdia de Deus em uma sequência de pedidos:

  • ensina-nos a contar os nossos dias” (v. 12)
  • volta-te (…) tem compaixão” (v. 13)
  • satisfaze-nos (…) com o teu amor leal” (v. 14)
  • dá-nos alegria” (v. 15)
  • sejam manifestos os teus feitos” (v. 16)
  • esteja sobre nós a bondade do nosso Deus (…) consolida a obra de nossas mãos” (v. 17)

Geralmente usamos o versículo 12 em ocasiões em que paramos para pensar na vida. Já fez isso? “Contar os dias” geralmente está associado a ponderar as ações do passado e pesar as suas consequências, tenham sido elas boas ou más. Entretanto, gostaria de ponderar um pouco mais a respeito da sequência do salmo com o fim de entender mais profundamente não apenas o motivo dos pedidos (dos versículos 12 a 17), mas também de implicações tão práticas, enraizadas na nossa própria natureza.

Partindo do que mais comumente fazemos, como disse no início do parágrafo anterior, pesar nossas ações e suas consequências não tem, obviamente, qualquer contraindicação. O próprio salmo trata disso, quando conclui sobre a condição humana, e quando apresenta a pergunta do versículo 11, que tem a ver com o questionamento que muitos de nós fazemos: será que o sofrimento pelo qual estou passando agora não seria resultado da ira de Deus por causa de … sei lá, talvez alguma coisa ruim que eu tenha feito no passado? O “temor que é devido a Deus” geralmente é traduzido para a imagem de um Deus triplamente irado em três instâncias: acusador, juiz e carrasco daqueles que estão sob seu domínio. Esta visão cruel leva muitos a pensarem em ser “bons” por causa do medo das consequências ruins que seriam dadas a eles se fossem “maus”. Isso leva ao entendimento de “pesar as ações e consequências” quando pensamos sobre o versículo 12. Como um contador que pondera e analisa contas, estamos, obviamente, ao analisar nossas próprias contas, mais interessados em que a contabilidade resulte em um saldo positivo. Deste saldo positivo, entendemos que necessitamos de crédito. E aquele que tem crédito é merecedor do valor associado a ele. Não é apenas assim que funcionam as leis básicas da economia. É assim que funciona a lei básica da nossa natureza, decaída por causa do pecado, que está tão angustiadamente desesperada em voltar para o Criador que procura fazê-lo das mais diversas formas, principalmente as que julga serem corretas.

Parte da angústia do salmista está em entender não apenas a limitação humana, mas a sua própria condição de limitado e a consequência dela. O Deus a quem é devido temor cumpre a sua ira sobre aquele que está impedido de ser justificado, não por outra coisa senão por sua natureza pecaminosa. A angústia de entender que não consegue livrar-se da ira de Deus está na mesma proporção da angústia pelo sofrimento da vida. Não é exclusividade sua, ou minha, pensarmos que nossos dias, talvez por tanta dedicação ao trabalho, excesso de informação, falta de profundidade de relacionamentos, tanta tecnologia e evolução, estejam passando mais rápido do que gostaríamos. O salmista já tinha essa percepção, como já disse. Entretanto, ele não ficou preso na tentativa de encontrar na vida que o cerca os motivos dessa corrida desenfreada pelo fim. Ele encontrou sua resposta na sua própria natureza [de homem]. A este mesmo homem não estaria simplesmente reservada a recompensa de sabedoria ao aprender contar os seus dias. Inclusive, para se entender de que sabedoria o salmista trata, não se pode tomar o versículo isoladamente. Cada um dos pedidos entre os versículos 12 e 17 está diretamente relacionado. Não é possível dissociá-los, uma vez que representam um pedido completo ao Deus que pode atendê-los, pois é ele o refúgio. O ensino, o retorno, a satisfação, o dom da alegria, a manifestação, o estabelecimento da bondade representam um pedido só, que se resume no final do versículo 17 (consolida a obra das nossas mãos) e é um pedido para que isso seja suficiente para o livramento da ira de Deus.

Esta conclusão do salmista é contrária ao que naturalmente fazemos, como já disse. Geralmente buscamos justiça no que nós podemos fazer. O salmista busca justiça no que Deus pode fazer. Geralmente, analisamos nosso passado, nossas ações e suas consequências; por vezes tiramos nosso passado sujo da lixeira, tentamos limpar um pouco o que for possível, melhoramos e transformamos em conselhos… porque temos fé em nós mesmos de que conseguiremos fazer melhor no futuro (isso me fez lembrar deste vídeo). O salmista busca a Deus, pela fé em Deus. Geralmente, ainda que consigamos enxergar nossos erros mais secretos, pouco nos aproximamos da atitude do salmista, que não apenas reconhece suas limitações, mas também engrandece aquele que é o seu refúgio. É como o contador que conclui haver apenas saldo negativo a partir da análise de suas contas e que não haveria qualquer forma de se livrar das consequências impostas pela lei. E a lei, como o retrato do Deus triplamente irado e pronto a executar sua pena, só enxerga fatos e sanções. E o medo da batida do martelo que segue junto do anúncio da sentença final é aterrorizante para quem vive pensando [na vida com ou sem Deus] desta forma. Assim, confundimos medo com temor: o primeiro está centrado em nós mesmos (o que eu fiz, faço, deixei de fazer), enquanto o segundo está centrado em Deus (no que Ele fez, faz e fará). Em outras palavras, concordando com o salmista, o temor do SENHOR é a total dependência dele, independentemente das minhas ações. Sim, não chore, mas é preciso dizer: você não é especial; não é o centro do universo. Não são apenas conceitos de filosofia e psicologia que estão se voltando para este entendimento. A Palavra do SENHOR, como acima dos tempos, já ensina isso, há tempos.

Para concluir, se o salmista ainda deixou alguma dúvida de que a única forma de obter o livramento da ira de Deus está nele mesmo, o livro de Romanos esclarece:

Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de quem obtivemos acesso pela fé a esta graça na qual agora estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus.
Romanos 5:1-2

Justificação pela fé, por meio de Jesus Cristo. Apenas isso traz reconciliação e paz com Deus (que resumem o pedido nos versículos 12 a 17 do salmo 90). Apenas isso, concordando com o entendimento do salmista, pode fazer com que eu e você abramos mão de contar nossos dias somente para contabilizar nossos erros e acertos, de modo que entendamos que a verdadeira sabedoria vem do temor do SENHOR, de depender totalmente dele, de abrir mão das nossas [boas] ações como tentativa de obter o livramento da ira de Deus (a salvação). Reconhecendo que como o pecado nos impede de obtê-la, a salvação, apenas a recebemos por meio da fé em Jesus Cristo, isso é graça de Deus. Voltando para o quadro que erroneamente pintamos ou aprendemos a pintar, podemos muito bem substituir a versão do “Deus ira” para o “Deus amor e justiça”. Com suas palavras é assim que A Palavra de Deus o retrata (e que resumo, neste momento, assim):

O Senhor nosso Deus é misericordioso e perdoador, apesar de termos sido rebeldes;
Daniel 9:9

Graças ao grande amor do Senhor é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias são inesgotáveis.
Lamentações 3:22

Quem é comparável a ti, ó Deus, que perdoas o pecado e esqueces a transgressão do remanescente da sua herança? Tu que não permaneces irado para sempre, mas tens prazer em mostrar amor.
Miquéias 7:18

Paz e reconciliação com Deus, por meio de Jesus Cristo. Apenas isso pode fazer com que qualquer angústia humana pela rapidez com que os dias se esgotam e que a vida passa seja substituída pela esperança do refúgio no SENHOR, o justo, o amor. Busquemos a Deus a cada dia e procuremos um verdadeiro relacionamento com Ele. Assim não apenas cairá por terra qualquer imagem errada que tenhamos da sua pessoa como também conheceremos quem somos e aprenderemos a nos relacionar com Ele.

Glórias somente a Deus!

Amém!